Derval sempre se achou um cara iluminado e assertivo que
poderia controlar sobremaneira o seu ambiente. Era o tipo que se enquadrava no
conceito de gestor pitbull, focado no negócio do ponto de vista do resultado,
dando pouca trela para os meios. Mas ia além. Talvez fosse um descendente dos
dinos, da espécie tiranossádico. Como tinha prazer em administrar por
desconforto! Tivesse ele opção entre duas alternativas a tomar para uma
providência, tomava sempre a que causasse maior desconforto aos subordinados,
que era para dar exemplo e trazer todo mundo sob rígido controle. Se fosse
passar um sabão em alguém, nunca o fazia reservadamente. Aproveitaria uma
reunião, um congresso ou qualquer festividade que era para fazer de público a
chamada em regra, de modo a deixar a vítima numa situação a mais vexatória
possível.
A família também é vítima de seu temperamento. A mulher é uma
pobre coitada, encolhida, não só psicologicamente. Mas até no físico ela vem se
encolhendo de uns tempos para cá. Os dois filhos são recalcados, psicóticos,
titubeantes e não têm confiança de dar um passo na vida sem que o pai lhes dê
aval. Até sobre os parentes mais distantes ele tenta estender suas rédeas e
controlar os passos. A sorte deles é que, em seu trabalho de gestor, de vez em
quando é transferido pra longe e seu controle sobre os parentes acaba se
afrouxando um pouco. Mas o dia em que se encontram são concitados a prestar
contas de tudo o que andam fazendo e, qualquer que seja o relatório
apresentado, as vítimas sempre sofrem alguma repreensão.
Mas agora, após um
longo dia de trabalho, depois exercitar exaustivamente seu músculo decisório,
Derval, num cansaço profundo, encosta-se na cama para repousar um pouco, antes
mesmo do banho. E ferra no sono. O sono lhe traz um sonho diferente de tudo o
que sonhara antes. Sonha que está num paraíso marinho, talvez nas ilhas
Maldivas, deitado numa praia, curtindo a beleza e a placidez do lugar. A paz
momentânea lhe faz refletir sobre o próprio estilo de vida e se propõe implantar
um projeto de mudanças. De modo firme e progressivo haveria de se tornar um
homem bondoso e humano. Implantaria um regime de cooperação, leveza e ternura
em sua própria família e talvez até propusesse criar um item no balancete da
empresa para medir o índice de satisfação dos trabalhadores.
Está de olhos fechados
e mesmo assim pode perceber que um ponto rajado surge no final de enseada e vem
vindo, crescendo até ser um tigre, na corrida mole dos tigres, em sua direção.
Ele intui que não se trata de um tigre malaio ou de bengala, de carne e osso.
Aliás, não é um tigre físico, mas um tigre simbólico, talvez um daqueles alucinados
de Jorge Luís Borges. Apenas metafórico.
Faz de tudo para se levantar e sair do caminho, mas alguma coisa o prende no
visgo do sonho. Por mais que se esforce continua deitado de costas sobre a
areia da praia e o tigre vem vindo e haverá de no mínimo passar sobre seu
corpo.
E dentro do sonho, agora convertido em pesadelo, vem o tigre,
como já prenunciado, e pisa em seu peito, bem sobre o coração. Há dois momentos
de grande impacto: um quando a pata lhe acerta e o outro, quando firma a pata
para o passo seguinte. Derval percebe, em pânico, que o sonho de ternura termina
ali. E o Médico legista acaba de emitir
o laudo, sobre a causa mortis:
infarto agudo do miocárdio.
(Publicado no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em maio de 2014).
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