Minha tristeza de desclassificado

Na última década li dezenas de obras, entre livros e teses, sobre o Brasil colonial,  na esperança de entender o período e não dizer besteiras ao escrever os três volumes do romance Naqueles morros, depois da chuva. A leitura, além da noção de como era o quotidiano da vida, me firmou algumas convicções de sentido mais amplo:
1) O ouro brasileiro  foi o insumo básico para que a primeira onda da Revolução Industrial acontecesse na Inglaterra. Vários países europeus detinham o domínio sobre as novas tecnologias da máquina a vapor. Mas, em razão dos convênios  com Portugal, só a Inglaterra  conseguiu o superávit (representado pelo ouro)  para bancar o custo social da grande virada: passar da produção artesanal das associações de ofícios para a produção de manufaturas em escala industrial. 
2) A economia mundial está vivendo um período neo-colonial, semelhante àquele puxado pela Inglaterra entre os séculos 18 e 19. Na época, a Inglaterra se impôs como a indústria do mundo. Hoje, esse papel é exercido pela China. Países periféricos, como o Brasil, funcionam como novas colônias fornecedoras de commodities (baratas)  e compradoras de manufaturas ( de alto valor agregado). Isso pode nos relegar à condição de país de civilização retardatária por mais alguns séculos.
3) O  Brasil, como pátria, foi historicamente uma grande madrasta, para boa parcela da população, os chamados “desclassificados”. Aqueles que não eram senhores nem escravos. Os homens livres numa ordem escravocrata. Falar em homens livres numa situação dessas soa até como ironia.  O mundo decente tinha lugar apenas para duas categorias: os donos dos meios de produção, de um lado, e os escravos, de outro. A produção tinha por finalidade a exportação e a subsistência. O mercado interno era menos que incipiente.  A economia de subsistência era para manter os escravos. Afinal, eram bens valiosos e precisavam ser preservados com saúde, sob pena de reduzir a produtividade e o seu valor de revenda.
Já os desclassificados não tinham lugar naquele  mundo. Viviam de bicos como agregados dos latifúndios. Praticavam a pesca, a caça e a coleta de frutos silvestres e eram malvistos tanto pelos senhores quanto pelos escravos. Os serviços que eventualmente lhes sobravam eram de vendeiro, tropeiro e empreiteiro de crimes. Dar uma sova ou eliminar algum desafeto do proprietário.  A valentia, a violência passou a ser o código de honra dos desclassificados.  Assim foi nos ciclos do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do ouro, do café, do gado e outros ciclos econômicos mais restritos.
Nos anos 60 do século passado, por uma legislação malvada, sem cogitar reforma agrária, os desclassificados foram expulsos do campo, de supetão, sem qualquer preparo. Me lembro de ver meu pai e minha mãe abraçados, chorando (até então eu não sabia que meu pai chorava) e se perguntando: o que vamos fazer da nossa vida agora?  Sem ter pra onde ir, os desclassificados se amontoaram nos arrabaldes, formando esse enorme cinturão de pobreza, drogas e violência de hoje em dia. O inferno desse pessoal vem de longe e foi engendrado nos mínimos detalhes.  

Em recente viagem à China, meu filho me mostrou imensos conjuntos habitacionais em Pequim. Ele me disse: “Estes apartamentos estão prontos para receber os camponeses que estão sendo preparados. Vão chegar aqui com moradia, trabalho e tudo o mais”. Minha tristeza de desclassificado ficou ainda mais profunda. 

(Publicado no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em abril de 2014).

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