Emoções entre jabutis

 
          Uma das lembranças mais antigas e ternas que tenho me foi proporcionada por um jabuti. Eu tinha de 3 para 4 anos e a gente morava num casebre de pau-a-pique e sapé no  encontro de uma várzea com o cerrado limpo, a uns 15 km de Iporá. 
 
 
Dentro do casebre, minha mãe cardava algodão para fiar na roca e eu brincava com meus boizinhos de sabugo. Meu pai estava no roçado, no lado oposto da várzea.
 
 
De repente, escutamos um grito de meu pai. Minha mãe assustou e eu nem sei se escutei direito. Estava muito envolvido com os bois. Minha mãe me colocou de gancho na cintura e despregou pela porta afora, chapinhando o espelho d’água da várzea. De longe vimos meu pai.  Vinha ligeiro com uma pedra na cabeça. Parecia muito pesada pelo esforço que fazia. Minha mãe diminuiu a velocidade. Não sei se pelo fôlego estava curto ou por que sabia que nada de grave estava acontecendo.
 
 
Quando nos encontramos, minha mãe me colocou no chão pantanoso e meu pai desceu a pedra e falou pra eu adivinhar o que era aquilo. Minha mãe logo retrucou: só se adivinhar mesmo, porque ele nunca viu um bicho desses.
 
 
Meu pai foi explicando que se tratava de um jabuti, que era bicho manso e bom de criar em casa, que criança até podia subir nele como se fosse um cavalinho.  Fiquei entre eufórico e ressabiado. Queria tirar proveito do novo brinquedo, mas temia pelo desconhecido. Meu pai falou pra gente ficar em silêncio pro bicho desemburrar. Em poucos minutos o jabuti retira as patas de dentro da carapaça, alonga o pescoço e entabula uma caminhada na direção em que já estava apontado. Vibrei com aquela pedra que caminhava.
 
 
Meu pai me pegou pelas axilas para me pôr em cima do bicho. Tive medo. Me soltou no chão e ele mesmo ficou de pé em cima do animal que, depois de adaptar a musculatura ao peso adicionado, continuou andando normalmente. Sapateei e bati palmas de euforia. Meu pai desceu, imobilizou o bicho. Ou seja, virou-o de costas e acrescentou: isso dentro de casa não deixa entrar pragas e até cura quem tiver bronquite.  Minha mãe me pegou de novo, meu pai me pegou o jabuti e fomos pra casa. Em poucas horas eu estava íntimo do novo amigo e ele foi por muito tempo o meu companheiro mais presente. Dois anos depois, quando mudamos para as barrancas do Rio Claro, o jabuti foi com a gente, numa jaula de tabocas, entre os cachorros, porcos e galinhas. Chegando lá, acho que estranhou a região e se mandou sem que ninguém visse. Foi uma das grandes perdas de minha infância. Penso que ele ainda zanza pelos cerrados remanescentes. Dizem que chega até os 100 anos. 
 
 
Agora, curtido os alvores da velhice, com meu netinho Arthur, encontro várias alegrias. Parece até que recuperei o antigo jabuti. Ainda que um jabuti simbólico. Não é de ver que quase meio século de labuta literária me deu essa surpresa maravilhosa: meu romance Naqueles Morros, Depois da Chuva foi distinguido com o prêmio Jabuti, o mais cobiçado do País.  Para um escritor “fora do eixo” isso é tão inesperado quanto se eu encontrasse o mesmo animal de minha infância.
 
 
Com este jabuti metafórico, tenho experimentado também emoções tão boas e vigorosas quanto aquelas, há 56 anos, quando meu pai me arrumou, mais que um brinquedo, um amigo: o meu querido jabuti. (Publicado no Jornal O Popular - Goiânia, Goiás em 03 de novembro de 2012).
 
 
 
Naqueles morros, depois da chuva - romance de Edival Lourenço. Vencedor do Prêmio Jabuti 2012.  A venda nas melhores livrarias ou pelo sites de vendas de livros.  
 


Fonte das imagens: google imagens
 

2 comentários:

  1. Enra! Crônica de tirar o fôlego, de deixar sem fala...

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  2. ONDE A HISTÓRIA ACONTECEU? QUANDO ACONTECEU? QUEM PARTICIPA DA HISTÓRIA?

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