A fumaça dos russos

 
 
Não gosto dos russos. Tenho motivos para não gostar dos russos.  É por causa deles que em algumas noites sou acometido de pesadelos. Acho que se não existissem os russos a vida seria muito melhor. Se não existissem os russos não existiria a literatura russa, uma das melhores do mundo, no século XIX. Mas, eu estaria disposto a me conformar com a não existência da literatura russa, desde que os russos não existissem, tal é minha pinimba com aquela gente.

 
Eu tinha 15 anos. Fazia o primeiro ano do ginásio à noite no Colégio Dom Bosco, em Iporá. De dia eu tocava uma rocinha de arroz nuns brejos drenados de meus parentes, às margens do ribeirão Tamanduá, ao lado da olaria de seu Daniel e seus filhos. Numa certa manhã dois aviões de guerra rasgaram o céu a oeste: um ao lado do outro. Atrás de si foram deixando filetes de fumaça, como vigas de uma ponte aérea.

 
Não entendi direito, mas me pareceu espantoso. Olhei pra olaria e vi que seu Daniel também estava observando os rastros dos aviões. A coisa era muito séria. Não só o seu Daniel e os filhos tinham interrompido as atividades para ver aqueles aviões inusitados. Até a mula deu uma pequena ré para aliviar o peso da manjara da pipa e ficou olhando pra cima com curiosidade e o cachorrinho vira-latas, sentado nas patas traseiras, olhava para cima e uivava. O Seu Daniel segurava o chapéu de palha na mão. Sei que quando ele tira o chapéu para alguma coisa é porque se trata de algo assombroso.

 
Bati a enxada no chão entre as ruas de arroz e a firmei de pé com um monte de terra para facilitar o seu encontro. Atravessei a cerca de arame farpado. O cachorrinho estava tão entretido que nem notou minha presença. A mula continuava olhando pra cima, gravemente, como se refletisse. Os meninos estavam apavorados. Seu Daniel voltou o chapéu pra cabeça, como se readquirisse domínio sobre a situação e foi logo falando: a coisa tá feia pro nosso lado.

 
Seu Daniel teria participado da Segunda Guerra como pracinha e não havia assunto no mundo que ele não dominasse. Conhecia de agricultura e de guerra, de ciência e superstição, de coisas deste mundo e do mundo além. E foi logo me explicando: aquelas vigas de fumaça eram de veneno expelido pelos aviões russos. Quando aquela fumaça descesse pra terra, tudo numa vasta região estaria morto: as pessoas, os animais e as plantas. Eu que já estava assustado entrei em pânico. Minha barriga doeu, suei frio. Sem ter muito o que fazer, voltei pro meu talhão e de vez em quando olhava pra cima e via que os caminhos de fumaça estavam se desmanchando.  No outro dia, a fumaça não existia e ninguém tinha morrido. Fui até sua olaria com o propósito de zoá-lo: E aí seu Daniel, a fumaça sumiu e ninguém morreu. Ele me disse com segurança: Ela pode demorar até 50 anos para descer.

 
Agora, toda vez que tenho gripe e fico sufocado à noite, sonho que estou  morrendo sufocado pela fumaça dos russos.

 
(Publicado no jornal O Popular- Goiânia - Goiás em 26 de outubro de 2012)
 

 

  

 

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