Por quem florescem as caraíbas



Chega enfim o mês de agosto. As nuvens se vão para o norte e as chuvas não comparecem mais. As árvores tortas despem-se de suas folhas já murchas, a cobertura de capim se transforma em feno e o verde do cerrado se apaga em sépia. A vista fica baça, o ar se torna insalubre, contaminado que está pelos fumos e a fuligem das queimadas. O chão ressequido se abre em frinchas, o vento retorce os bambus e o  demônio rodopia frenético no centro dos cones de poeira. O gado emagrece nos campos. Os chapadões de lavouras agora repousam dormentes nas palhadas. Os bichos do mato se desesperam por esconderijo, água e alimento. A respiração das pessoas se torna um tanto mais difícil e ofegante, no campo e na cidade. E inevitavelmente resvala na alma um sentimento difuso de tristeza, em ondas de nostalgia, de quem perdeu não sabe o quê, nem quando. Parece um tempo de expiação para quem vive neste quadrante do planeta.
  
É nessas condições que as caraíbas (aqui incluída toda sorte de ipês amarelos) hasteiam por toda parte suas inflorescências viçosas, como cachos de incêndios de labaredas douradas, numa euforia vegetal de compensação pelo sufoco que passamos. É como se fosse um conjuro, uma reza brava, talvez uma mandinga da natureza, justamente uma tentativa de afugentar os maus agouros, os cachorros doidos, os cantos das acauãs e os sentimentos aziagos que nos acometem todo ano, ali pelo mês de agosto.

Tenho comigo que a florada dos ipês de agosto é um dos fenômenos mais belos de nossa paisagem. Um acontecimento que sai do ambiente natural e contamina positivamente a alma das pessoas. Pelo menos daquelas que se mantêm ligadas às coisas da natureza, daquelas que não perderam o vínculo com sua placenta ambiental, que é o bioma do cerrado, que, aliás, vem sendo terrivelmente descaracterizado nas últimas décadas, a ponto de às vezes eu me sentir que mudei de país ou de planeta. Ou então que perdi parte da vista. Pois o que agora vejo são nesgas claudicantes daquilo que em minha mocidade era uma amplidão consistente.

Certa vez, no meu aniversário de 13 anos, nenhuma pessoa se lembrou de me cumprimentar. Confesso que fiquei um pouco entristecido. Afinal era uma data curiosa: fazer 13 anos num dia 13 de agosto. Nem me lembro se era sexta-feira. É que a gente passava por um período especialmente difícil: meu pai falecera há poucos meses, depois de um longo e penoso sofrimento, e minha avó esmaecia no leito de morte. Num ambiente assim, com tantas dores pungentes, quem haveria de se lembrar do natalício de um pirralho?

Foi então que fui acometido da pretensão lírica de que eram por mim que as caraíbas floresciam. Que as caraíbas em silêncio, mas em suas chamas florais, estavam me desejando feliz aniversário e muitos anos de vida. Senti naquele dia uma energia insuperável de comunhão com a natureza, de pertencimento a este ambiente belíssimo do cerrado que me viu nascer e que nele hão de diluir meus ossos.

Pode parecer uma pretensão tola e irracional (quem disse que somos feitos só de racionalidade?), mas até hoje me conforta a ideia de que é por mim (e por todos nós) que as caraíbas (que ainda restam) florescem.  

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em 20 de agosto de 2012)

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