Edival Lourenço

Lançamento do livro "Naqueles morros depois da chuva"

Edival Lourenço

Lançamento do livro "Naqueles morros depois da chuva"

Edival Lourenço

Programa Raízes Jornalismo Cultural

Edival Lourenço

Programa Raízes Jornalismo Cultural

A era dos pós

Não me refiro aos pós da queima dos combustíveis fósseis, da queima das matas, nem da poeira que sobe pela ação das máquinas na remoção de terra ao redor do mundo, ou aos cones de poeira sobre os chapadões arrasados, no mês de agosto. Não me refiro aos pós da queima dos canaviais, das matas virgens, dos cerrados de reserva (das poucas que ainda há), ou das pirambeiras de luxo de Los Angeles. Nem aos pós pré-universais que aturam (ou atuam) na formação dos imensos corpos celestes. Nem ao pó simbólico que teria nos dado consistência física no primeiro momento da criação, ao qual haveremos de voltar um dia. Nem ainda me refiro aos pós alucinógenos que afetam diretamente a sanidade mental de boa parte da população e acabam por atribular a sociedade como um todo, seja pela perdição dos viciados,  seja pela violência que os pós impõem aos lares, às ruas, à população, enfim.   

Os pós a que me refiro são aos diversos empregos do prefixo latino  “pós-“  que segundo  o Dicionário Houaiss, aberto na tela à minha frente, quer dizer “depois de (no espaço e no tempo)” que entra na formação de palavras pretensamente cultas como posfácio, pós-moderno, pós-guerra e assim por diante.  É a estes que me refiro. Pois muito me admira e até me espanta como este prefixozinho tão velho tem ganhado tanto sentido para definir a falta de sentidos que desorienta nossos dias. 

Há muito se diz que vivemos um período da pós-modernidade em que, segundo a definição de Karl Marx adotada por Marshall Berman para definir o nosso tempo, “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Esta é a sensação que temos. Nada é perene, nada chega a concluir, nada continua, a luta é vã, nossas conquistas são vãs, nossas vitórias são pífias, os sonhos não têm razão de ser, porque nossas referências e valores se sublimam. Não no sentido de se tornarem sublimes, grandiosos, perfeitos. Mas no sentido de passar do sólido (palpável), para o gasoso (volátil).  E acabar em anda, no vazio de nossas existências desassistidas de propósitos. 

Estamos no período da pós-história, onde tudo se embaralha e o que é já era e o que vai ser já foi ou nunca será. Na área da produção já estamos no pós-industrial, onde a mecânica é substituída pela automação, com enormes conseqüências no trabalho, na política, na economia e na cultura. Estamos na era pós-literária, onde o conhecimento não é mais repassado por leitura racional, mas por uma espécie de osmose emocional. Estou esperando abrir um canal de USB na minha cabeça para receber informações de roldão e aplacar minha curiosidade mórbida. 

Na área da transcendência vivemos a era da pós-religião, em que Deus é vendido como uma mercadoria tosca e banal, nas bodegas de esquina. Na política estamos na era do pós-poder, em que as antigas instituições da democracia representativa se diluem e os governantes eleitos não têm mais legitimidade nem ascendência sobre os governados. Quer para atender-lhes as necessidades, quer para coibir seus abusos. É o que estamos assistindo nas cidades e nos campos de todo o mundo. Já se fala até num período pós-humano em que o ser humano como conhecemos dá lugar a um ser de alto desenvolvimento tecnológico, mas um ser bárbaro em termos culturais. Como se diz na periferia global: é nós. Ou melhor: é pós.   

(Publicado no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em junho de 2014).

Gambá digital

Viver numa sociedade pacífica ou pelo menos onde se possa afastar os inimigos é um sonho que persegue a humanidade desde sempre. Ao longo da história o homem tem construído cidades muradas, fortificações, casamatas,  pontes elevadiças sobre fossos, escoltas, exércitos. Tem inventado armas pessoais, escudos, roupas encouraçadas como as armaduras medievais. Modernamente, além do retorno dos bairros murados, veem-se muitas casas com câmeras, alarmes, cercas elétricas e carros à prova de bala. Já andar armado no Brasil é só pra quem  é do ramo: a polícia e a bandidagem. 

A preocupação em não ser maltratado pelos inimigos saiu da esfera laica e adentrou o mundo transcende, por meio das religiões, rituais e superstições. Veja este trecho da Oração de São Jorge: “Eu andarei vestido e armado com as armas de Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar”. 

Outro trecho emblemático desse desejo pode ser visto no Salmo 91: “Ele o livrará do laço do caçador e do veneno mortal. Ele o cobrirá com as suas penas, e sob as suas asas você encontrará refúgio; a fidelidade dele será o seu escudo protetor. Você não temerá o pavor da noite nem a flecha que voa de dia, nem a peste que se move sorrateira nas trevas, nem a praga que devasta ao meio-dia. Mil poderão cair à sua esquerda; dez mil, à sua direita, mas nada o atingirá.” 

Observando bem nas pajelanças, nas mandracas, nas rezas bravas, nas mandingas, nas benzeções, feitiçarias e sessões de candomblé, os termos são muito parecidos. A possibilidade de manter o corpo fechado e o inimigo fora de nossa aura é um sonho acalentado por todos os povos, em todos os tempos e lugares.

Talvez um modo de nos defender não fosse criar mecanismos de proteção e defesa. Mas combater o mal pela raiz, por meio da educação, da cultura e do processo civilizatório. Se pudéssemos atingir um grau de civilização tal que fosse apagado o troglodita que há em cada um de nós, convencido de que o bem faz bem a todos indistintamente, o problema estaria resolvido.

No entanto, cada vez mais isto se parece com utopia. O que vemos hoje é um avanço tecnológico sem precedentes em contraposição a uma barbárie crescente, a uma regressão cultural e civilizatória sem par, pelo menos depois da Idade Média.  Diante deste paradoxo, a solução continua sendo o velho modelo preconizado pelas rezas e superstições: fechar o corpo. 

Com o avanço tecnológico na velocidade que vai,  não está longe o dia em que possamos comprar, via online, uma armadura digital,  um elmo hi-tech, em forma de aura ou campo magnético, que possa nos proteger de tiros, bombas, facadas, choques, incêndios, pedradas, rasteiras, chaves de braço e tudo o mais. 

 Será a concretização do sonho dos devotos de São Jorge. Ou melhor, de todo ser humano em seu senso de autopreservação. Isto é, até que um hacker quebre a nossa senha, invada nossa fortaleza pessoal e nos tome tudo a golpes de pauladas.  Inclusive a vida. Como a um reles gambá no galinheiro da quinta.  


Publicado no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em maio de 2014.

A fila

Sem explicar os motivos, o início do atendimento foi adiado várias vezes. Mas até que um dia começou, tumultuado, com a polícia distribuindo cacetadas aos mais renitentes para organizar a fila, que desde o início dava pra lá de meio quarteirão.  Inclusive com alguns trechos de fila dupla e uns espertinhos furando aqui e ali.  André aproveitava as oportunidades para espionar a fila. Ver se pegava uma hora em que ela encolhesse e aproveitaria para ser atendido. 

Passava na ida para o trabalho. Na volta para o almoço. No retorno ao batente e de novo ao regressar para casa. Mas a fila continuava cada vez maior. Não tinha hora nem dia, nem sol nem chuva, nem frio nem calor. Nas alturas, se caísse neve ou chovesse canivete a fila seguia crescendo. Dias passando e o período do atendimento se encaminhando ao final. E a fila nada de encolher. Ao contrário. Agora já rodeava o bairro inteiro, a qualquer hora do dia ou da noite.  Mas André insistia sondando a fila em suas passagens, na esperança de que em algum momento ela encolhesse.

André, teimoso que só, continuou vigiando nos dias seguintes. Inclusive nos feriados, sábados e domingos. Já na última semana, a fila não podia mais ser vista apenas numa caminhada. Em imagens aéreas, de helicóptero e satélite, a televisão mostrava que ela descolara do bairro, atravessara o bairro vizinho e mais outros e já adentrava a cidade contígua. 

André foi se apavorando, com a possibilidade de não ser atendido. Se pedisse ao chefe para faltar um dia, um diazinho só, para pegar a fila, ia ser descascado. O chefe é osso. Até sabia o que ele ia dizer: “Brasileiro é merda mesmo (o chefe é gringo). Deixa tudo pra última hora pra inventar motivos para faltar ao serviço.” E não adiantaria dizer que o atendimento já começou com fila grande. Mas André estava determinado. Podia até ser despedido, que não ia perder a chance. Falou com o chefe que ia enforcar a sexta. Sofreu o pito esperado e no final da quinta-feira pegou o rabo da fila, na esperança de ser atendido até domingo. 

Começou ansioso, com medo de não dar tempo. Mas depois engrenou um namoro com uma pardinha que entrou logo atrás. E a vida até que ficou bacana. Beijaram-se, comeram sanduíche, panqueca, tomaram refrigerante, água mineral caseira, picolé de água suja. Um vigiou o lugar do outro para procurar banheiro. Mas a fila era longa, os corpos foram fedendo, o namoro azedou e a moça até trocou de lugar com um fortão lá de trás, só pra sair dele. A vida voltou a ficar ruim. 

No final do domingo, já na reta de chegada, André começou a sentir uns troços. Junto com a alegria de estar chegando, um vão na barriga, uma leveza estranha. Ao se deslocar na fila, deu umas duas ou três passadas em falso. Estava levitando. Bateu de leve braços e pernas e começou a subir no ar. Não resistiu e gritou: “Estou voando! Olha, gente, estou voando!”  Quando a vertigem passou, André havia perdido a vez. Insistiu em ser atendido. Houve um começo de tumulto. Veio o policial que de nada sabia e o mandou para o começo da fila outra vez. 

Publicado no jornal O Popular em Goiânia - Goiás em maio de 2014.





Pisadas do tigre


Derval sempre se achou um cara iluminado e assertivo que poderia controlar sobremaneira o seu ambiente. Era o tipo que se enquadrava no conceito de gestor pitbull, focado no negócio do ponto de vista do resultado, dando pouca trela para os meios. Mas ia além. Talvez fosse um descendente dos dinos, da espécie tiranossádico. Como tinha prazer em administrar por desconforto! Tivesse ele opção entre duas alternativas a tomar para uma providência, tomava sempre a que causasse maior desconforto aos subordinados, que era para dar exemplo e trazer todo mundo sob rígido controle. Se fosse passar um sabão em alguém, nunca o fazia reservadamente. Aproveitaria uma reunião, um congresso ou qualquer festividade que era para fazer de público a chamada em regra, de modo a deixar a vítima numa situação a mais vexatória possível.

A família também é vítima de seu temperamento. A mulher é uma pobre coitada, encolhida, não só psicologicamente. Mas até no físico ela vem se encolhendo de uns tempos para cá. Os dois filhos são recalcados, psicóticos, titubeantes e não têm confiança de dar um passo na vida sem que o pai lhes dê aval. Até sobre os parentes mais distantes ele tenta estender suas rédeas e controlar os passos. A sorte deles é que, em seu trabalho de gestor, de vez em quando é transferido pra longe e seu controle sobre os parentes acaba se afrouxando um pouco. Mas o dia em que se encontram são concitados a prestar contas de tudo o que andam fazendo e, qualquer que seja o relatório apresentado, as vítimas sempre sofrem alguma repreensão.

 Mas agora, após um longo dia de trabalho, depois exercitar exaustivamente seu músculo decisório, Derval, num cansaço profundo, encosta-se na cama para repousar um pouco, antes mesmo do banho. E ferra no sono. O sono lhe traz um sonho diferente de tudo o que sonhara antes. Sonha que está num paraíso marinho, talvez nas ilhas Maldivas, deitado numa praia, curtindo a beleza e a placidez do lugar. A paz momentânea lhe faz refletir sobre o próprio estilo de vida e se propõe implantar um projeto de mudanças. De modo firme e progressivo haveria de se tornar um homem bondoso e humano. Implantaria um regime de cooperação, leveza e ternura em sua própria família e talvez até propusesse criar um item no balancete da empresa para medir o índice de satisfação dos trabalhadores.

 Está de olhos fechados e mesmo assim pode perceber que um ponto rajado surge no final de enseada e vem vindo, crescendo até ser um tigre, na corrida mole dos tigres, em sua direção. Ele intui que não se trata de um tigre malaio ou de bengala, de carne e osso. Aliás, não é um tigre físico, mas um tigre simbólico, talvez um daqueles alucinados de Jorge Luís Borges.  Apenas metafórico. Faz de tudo para se levantar e sair do caminho, mas alguma coisa o prende no visgo do sonho. Por mais que se esforce continua deitado de costas sobre a areia da praia e o tigre vem vindo e haverá de no mínimo passar sobre seu corpo.

E dentro do sonho, agora convertido em pesadelo, vem o tigre, como já prenunciado, e pisa em seu peito, bem sobre o coração. Há dois momentos de grande impacto: um quando a pata lhe acerta e o outro, quando firma a pata para o passo seguinte. Derval percebe, em pânico, que o sonho de ternura termina ali.  E o Médico legista acaba de emitir o laudo, sobre a causa mortis: infarto agudo do miocárdio.   

(Publicado no jornal O Popular - Goiânia - Goiás em maio de 2014).       

Guerra civil à brasileira

Com frequência ouvimos que determinado gestor público fez algum negócio, não para atender aos interesses da coletividade,  que representa, mas para atender  aos próprios interesses. Este deveria ser o crime máximo da política. O gestor que o praticasse deveria receber pena capital: ser banido do exercício da função público.

Infelizmente não é assim.  No mais das vezes quem comete um pequeno crime fica credenciado para um crime de média monta. O que pratica um médio conquista know-how para um crime de enormes dimensões. A sociedade é um pouco, por que não dizer, bastante condescendente com os larápios da coisa pública, como se o que é público não fosse de ninguém. Nenhum corrupto dos nossos veio do Beleléu ou de Marte. São terráqueos e nacionais, vindos de alguma extração social autóctone.

 Até há um pensamento de que a corrupção não é tão prejudicial. Afinal, o dinheiro não some. Apenas muda de lugar. O roubo da merenda escolar vai para a pecuária ou para o supérfluo. Continua na economia a produzir riquezas. Não há pensamento mais tacanho. Dinheiro fora do lugar gera aleijões insanáveis. No caso, a criança sem merenda cresce com déficit protéico, deficiência que se converte em evasão escolar, analfabetismo, subemprego, sociedade capenga. O dinheiro que vai para o supérfluo no mínimo gera desequilíbrio na balança comercial. Os supérfluos são de um modo geral importados.  Ao longo do tempo isso provoca um estrago medonho.

A política luso-brasileira tem tradição no ramo. O rei de Portugal, D. Pedro II (não é o nosso Pedro II. O nosso II foi o D. Pedro IV de Portugal) assinou o Tratado de Methuen com a Inglaterra, em 1703, com validade perpétua. O rei português não queria assinar. Entendia que era perverso ao reino. O tratado era até bem singelo. Portugal (e suas colônias) só poderia consumir tecidos da Inglaterra e a Inglaterra se comprometia a adquirir todo o excedente de vinho português. Sem barreiras fiscais. D. Pedro achava que a exportação de vinho seria infinitamente menor do que a importação de tecidos, o que ao longo do tempo geraria déficit na balança comercial lusitana. Sem contar que Portugal já pagava os tufos para os ingleses fazerem sua escolta nos mares. Mas dois dos conselheiros mais influentes, o duque de Cadaval e o marquês de  Alegrete (ministros da Justiça e das Finanças, respectivamente), bateram o pé que o tratado precisava ser assinado, que seria a redenção de Portugal e coisa. No entanto, os dois ministros eram grandes viticultores e o tratado apenas atendia à ânsia de expansão dos próprios negócios.

Ao longo dos anos o negócio se mostrou mesmo ruinoso. Matou no nascedouro a indústria têxtil portuguesa, gerou um desequilíbrio monumental nas contas externas e, ao florescer o ciclo do ouro no Brasil, a produção foi quase toda pra Inglaterra a fim saldar as dívidas do infeliz tratado. Por essas e outras, depois dos feitos das grandes navegações e das descobertas territoriais que marcaram o fim do feudalismo e o início da era moderna, Portugal nunca mais se viu em posição de apogeu.

Mas com o ouro do Brasil a Inglaterra sustentou o período heróico da primeira onda da revolução industrial.  Convido o leitor a buscar na memória quantos tratados de Methuen já viu nossos gestores assinaram. Só mesmo um país “abençoado por Deus” poderia resistir a essa guerra civil dos poderosos contra o próprio país. 

(Publicada no jornal O Popular - Goiânia - Goiás - em maio de 2014).